Marília Carvalho Soares
Passei muito tempo
tentando encontrar uma forma de dar início à minha fala aqui, hoje. Buscava a
maneira adequada, palavras significativas, um convite que de fato incluísse
todos vocês na caminhada que reconheço estar iniciando agora. Tentei delimitar
um objetivo, identificando o que de mais expressivo gostaria de dizer nesta
oportunidade. Por fim pareço ter encontrado uma maneira de juntos construirmos
esse encontro. Peço que pensem ou anotem pelo menos três palavras que associam
livremente, de acordo com as velhas recomendações de Freud, à palavra “negro”.
O que vem? Pronto. Já podemos iniciar.
Reconheço a
necessidade de escutarmos em primeira mão o nosso próprio racismo, acreditando
que somente desta forma seremos capazes de escutar aqueles que nos chegam para
falar sobre este assunto. Penso que estamos todos envolvidos nas sutis
articulações que compõem este fenômeno, considerando, desse modo, que o racismo
se configura como um sintoma social. Mas o que se presentifica entre tal
sintoma social e o psiquismo de cada indivíduo negro? Considero que aí se
articule uma dialética importante de ser estudada através da psicanálise.
Para Souza e Gallo
(2002, p.39),
racismo é entendido como efeito de um processo que coloca em jogo
tanto o temor subjetivo de se haver com o desejo do outro/estranho a mim mesmo
como, também, uma fina rede de poderes articulados. O racismo advém de um
extremo ódio e fascínio pela forma do gozo alheio, pelos modos como o outro
quer/sabe ser feliz; formas de vidas outras que nos fazem ter a incômoda
sensação de que talvez pudéssemos ser felizes de outros jeitos.
Segundo Fanon
(2008, p.160-161), em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, “Quando a
civilização européia entrou em contato com o mundo negro, (...) todo mundo
concordou: esses pretos eram o princípio do mal. (...) negro, o obscuro, a
sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas
abissais(...)”. O autor discorre sobre o medo do europeu frente ao africano.
Esse medo estava certamente associado à sexualidade de um corpo negro, à sua
natureza. Fomos tidos como primitivos e estigmatizados como tal. O biotipo do
criminoso nato de Lambroso era o do negro, corpo que recebia rótulo de
criminoso, preso e submetido à mensuração.
Atualizando tais
formas de discriminação, ditados populares com representações negativas dos
negros seguem sendo falados como práticas jocosas que aparecem mesmo quando a
lei busca controlar. Trata-se de um racismo pautado em piadas, brincadeiras. Considerando
que o inconsciente se manifesta através de sintomas, chistes, sonhos e atos
falhos, esses são alguns dos momentos oportunos em que o preconceito, ganhando
voz, grita o que em geral a consciência se esforça por reprimir. Este grito
ecoa e produz ruídos. Enquanto não escutarmos, insistindo na crença de uma
sociedade desracializada, de uma miscigenação democrática, os restos deste
grito emudecido continuarão espalhados entre nós, enquanto sintoma social, e em
cada indivíduo negro, como um incômodo muitas vezes desconhecido, sem nome, sem
palavras...
Ainda hoje
seguimos associando, com muita frequência, atributos biologizantes ao negro,
como se estivéssemos, nós negros, mais próximos da natureza, afastados da
cultura. Seríamos uma ameaça porque negros são, por exemplo, mais viris, mais
emotivos, mais violentos... Tais estereótipos carregam o corpo negro de
predicados negativos. Considerando que o racismo se pauta também na relação
entre formas corporais e qualidades de ordem moral e intelectual, associadas a
determinadas “aparências”, corpo, imagem, beleza são importantes significantes
a serem incluídos nesta reflexão. Nesse sentido, cabe considerarmos o que Freud
nos trouxe acerca do estranho, que para ele remete-nos ao estudo da estética2,
incluindo como estranho aquilo que nos amedronta, tendo relação com a
castração. Para Lacan (2005, p.51), o estranho “é aquilo que aparece no lugar
em que deveria estar o menos-phi”, é a castração imaginária, porque não existe
imagem da falta.
Buscando pensar o
racismo à luz da Psicanálise, tentei inicialmente considerar as dimensões
simbólicas do corpo negro e o ideal de brancura a que estes indivíduos se
encontram submetidos. Assim, vi-me diante da tentativa de encontrar o nó, o
ponto em que simbólico e imaginário se encontram, produzindo marcas psíquicas
peculiares aos negros. Penso que a solução para esta questão seria reconhecer o
racismo enquanto sintoma social, sintoma aí localizado entre o imaginário e o
simbólico.
Em conversas
iniciais sobre a questão racial com alguns psicanalistas, escutei repetidas
vezes que este se trata de um tema da ordem do Imaginário. Parecia-me que,
desta forma, pensar o racismo através da psicanálise seria necessariamente
debruçar-me sobre um caminho no qual estaria dando voltas ali pela primeira
alça do grafo do desejo, sem alcançar o pai, a Lei, a ordem do simbólico. Então
eu pensava: qual é mesmo o engodo? O que engana? O significante engana! E é com
ele que nos dispomos a trabalhar. Assim pude escutar com mais tranqüilidade as
palavras coladas, aderidas ao corpo num primeiro momento de inserção neste
mundo de letras ao qual pertencemos.
O Imaginário não
seria menos importante, considerando que nos constituímos através destas
primeiras investidas diante do espelho. Simbólico e Imaginário se encontram num
mesmo sujeito e é através do significante que acessamos estas duas ordens. O
sujeito, no estádio do espelho, se vê ao perceber a diferença e começa a
pensar, refletir, acessando desse modo o simbólico.
O estádio do
espelho é uma etapa fundamental no desenvolvimento do sujeito, durante a qual a
criança faz a conquista da imagem do seu corpo próprio. O eu da criança humana,
sobretudo em virtude da prematuração biológica, constitui-se a partir da imagem
do seu semelhante. É no momento em que a criança percebe a existência de um
outro, diferente dela, que se produz uma marca significante, fazendo emergir um
sujeito. Trata-se de um sujeito que se vê e vê o outro através do espelho.
Fico pensando que
tipo de imagem do próprio corpo o negro constrói. O que herdaríamos desse
espelho? Muito comumente os negros rejeitam sua conformação física, buscando
alcançar características que o aproximem “do branco”. Ainda bem cedo mães de
crianças negras tentam modificar algumas marcas que correspondem a
características próprias do negro. O sujeito aprisionado no Imaginário congela
uma imagem.
Esse ideal de
brancura parece nos perseguir... No mundo do trabalho é comum vivenciarmos a
exigência de sermos os melhores, exemplares. Carregamos desejos de pais que
projetaram em nós o sujeito que não puderam ser. A fim de diminuir as
diferenças, negros se desdobram por alcançar um ideal de brancura. Buscamos
articular um discurso homogêneo, como se todos pensassem igual, o que
supostamente diminuiria a distância, aumentando a aceitação. Ser aceito seria
mais importante do que ser si mesmo?! Que preço se paga? É impossível para o
negro não se deparar com as ameaças que lhe chegam a todo momento. O racismo é
uma expressão da violência. Como não se formula explicitamente, circula
silencioso, velado...
Quais seriam então
os efeitos desse discurso subliminar que faz operar o racismo? Que marcas ele
deixa? A que tipo de sofrimento psíquico estamos submetidos?
Sendo psicóloga,
psicanalista, educadora, e também em função da minha condição de negra,
herdeira de um passado histórico que somente agora começa a ser contado nas
escolas de forma mais responsável, após a implementação da lei 10.639/03, que
colocou para as escolas a necessidade do ensino da História e da Cultura
Afro-brasileira e Africana, tenho refletido acerca da dimensão psíquica do
racismo, considerando o corpo negro como simbólico, o que corresponde a um
caminho possível de ser trilhado através de diferentes saberes.
Referenciada nas
minhas práticas profissionais em espaços de educação e clínica psicanalítica,
realizei escutas de diferentes qualidades nesses contextos e foi a partir
dessas experiências distintas que pude construir algumas observações que me
servem de referência para abordar as subjetividades em processo. Processo,
porque me refiro às relações presentes nos espaços considerados.
Nas escolas não é
difícil observar, como em outros espaços de convívio, uma preocupação intensa
com a aparência. A presença da violência física e verbal relacionadas a
atributos do negro demonstra uma descontinuidade entre o que é vivido no
cotidiano pelos educandos e educadores e o discurso assumido pelas escolas. A
lei já citada tem obrigado as escolas a se colocarem diante dessa reflexão.
Interessa saber a respeito do currículo oculto, o que fica por trás e permeia
as relações, produzindo efeitos nas subjetividades construídas através das
experiências cotidianas nas escolas.
Reconheço que a
família e a escola têm importância fundamental nesse processo de construção de
subjetividades. Para melhor compreender as sutilezas presentes nas relações
raciais em nosso país, acredito ser necessário investigar como se constrói e se
mantém a reprodução da discriminação a partir das relações vivenciadas nesses
espaços. Escutar os discursos enunciados por pais, mães, irmãos, no contexto
familiar, e aquilo que se diz nas escolas por colegas e educadores poderia
elucidar algumas questões, traduzindo práticas de racismo através de vozes do
cotidiano.
Criamos e
recriamos todos os dias variados mecanismos de defesa para manter afastados da
consciência conteúdos indesejáveis. Mas quanto menos simbolização, mais retorno
do recalcado. O fracasso do recalque traz à tona o recalcado, o estranho
ameaçador. Acredito que esse seja um caminho importante de ser mencionado,
possibilitando-nos pensar sobre como tais fenômenos afetam o negro não apenas
no plano sociológico, mas também no plano psíquico. Haveria aí uma dialética a
ser considerada que envolve a experiência psíquica de cada sujeito e o fenômeno
racista em sua totalidade.
De acordo com
Pontalis (1991, p.39-40),
(...) o fenômeno racista só surge quando o "estrangeiro"
está na cidade. (...) O racismo encontra suas fontes na oposição entre próprio
e estrangeiro (...) mas para expulsar é preciso antes ter ingerido. Só se
vomita o que se engoliu. Não há corpo estranho senão dentro do próprio corpo.
(...) Depois, já não há no racista oscilação entre atração e medo, essa
fascinação confusa pelo estranho e estrangeiro. (...) O racista separa, cliva,
há nele um amor pelo seu ódio.
O estranho é efeito
de um material que retorna, quando ele se mostra, assusta, espanta, trazendo à
tona conteúdos pré-edípicos, nosso narcisismo primário. O que antes funcionava
como um tipo de amor próprio ilimitado, necessário e estruturante, retorna como
sintoma, apresentando-se sob a forma de um eu que não se distingue facilmente
do mundo externo e das outras pessoas. Por isso se esforça por repelir,
separar. Aí caberia a idéia primitiva e atual de superioridade das raças, como
uma manifestação deste narcisismo primário.
O estranho jamais
é assimilável. Quando o é, deixa, obviamente, de ser estranho (SOUZA e GALLO,
2002, p.57). Talvez por esse motivo eu tenha insistido na idéia de falarmos,
escutarmos os discursos que reproduzem práticas racistas nos dias de hoje,
porque penso que é através de experiências como esta que o estranho pode vir a
tomar outras formas, ganhando palavras, permitindo que possamos reconhecer o
estranho que somos nós para nós mesmos.
Daí a importância de darmos palavras ao
incômodo presente nas relações de intolerância vivenciadas em nosso cotidiano.
Freud escreveu sobre a intolerância mortífera do Estado Alemão e estava ali
totalmente implicado. Assim pôde renovar a teoria, reinscrever traços, cortando
letras. Diante do real da segregação, buscamos formas de sobrevivência,
escutando sobre o que é ocupar este lugar estranho-familiar de excluído.
Não trago
respostas, proponho questões. Isso nos parece familiar, não? Ou seria o
estranho, aquilo que de tão próximo, parece-nos desconhecido. O estranho está
no campo do ameaçador e parece funcionar assim a dinâmica do racismo. Para nós
que vivemos em Salvador, cidade mais negra fora da África, o racismo é algo tão
próximo, cotidiano e corriqueiro, mas reagimos muitas vezes como se fosse absurdo,
uma aberração! Fanon nos disse: “Escuta, branco!”. Jurandir Freire Costa, por
sua vez, parafraseando Fanon, disse: “Escuta, psicanalista!”. Para além do
dito, nos interessa o dizer, a fala própria de cada um. E nós, psicanalistas, o
que temos a dizer a respeito do racismo? Foi a este exercício que me dispus,
buscando na Psicanálise referências que fundamentassem minhas reflexões,
tentando construir cuidadosamente uma enunciação sobre este tema tão atual,
discutido nos diversos espaços sociais. E por que não entre nós, psicanalistas?
BIBLIOGRAFIA
FANON, F. Pele
negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREUD, S. “O
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Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.
-------------- “O
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XXI. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 1996.
LACAN, J.
(1959-1960). O Seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
NOGUEIRA, I.
Significações do Corpo Negro. Tese de Doutorado. Pós-Graduação em Psicologia
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Expressões de Vivência da Dimensão Racial de Pessoas Brancas: representações de
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PONTALIS, J. Uma
cara que não agrada. In: Pontalis, Jean-Baptiste, Perder de vista, Rio de
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SOUZA, R. e GALLO,
S. Por que matamos o barbeiro? Reflexões preliminares sobre a paradoxal
exclusão do outro. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), 2002.
Disponível em:
<www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10848.pdf>
Acesso em: 10 ago. 2008
SOUZA, N.
Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social, Rio de Janeiro: Editora Graal,1983.
VILHENA, J. Das
cores e seus discursos: Sobre a violência do racismo, 2006.
Disponível em:
<http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.4.3.3.htm>
Acesso em: 28 abril. 2008.
1 Texto apresentado na Jornada da SEDE
Psicanálise, 2008.
2“(...)
por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das
qualidades do sentir.” (FREUD, p.237, 2006).
Marília, muito bom!!! Agora podemos ter acesso de forma mais ampla aos seus estudos e reflexões tão importantes para as nossas discussões do dia-a-dia. Neste cenário social tão complicado no que diz respeito às questões raciais, é crucial estabelecermos o contraponto entre o real e o imaginário, a aparência e a essência. Parabéns
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