segunda-feira, 13 de agosto de 2012

COPENE 2012 - “Os desafios da luta antirracista do século XXI” Coordenando a mesa "Impactos do racismo em grupos de resistência"


''I ENCONTRO DIÁLOGOS E II CURSO EM PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS'' 28\07\2012

Foto de Vinicius Melo.
Psic. Ma. Marília Soares, expondo sobre "Relações raciais e os impactos no processo de escolarização"

"A ideia de escola como uma instituição branca sustenta-se através dos livros didáticos adotados, das práxis, dos posicionamentos dos educadores historicamente constituídos, sendo a ideologia da branquidade transmitida através de gerações. Trata-se do primeiro e importante cenário social em que são travadas as experiências conflitivas e tensas no que diz respeito às relações raciais".

Aluno branco de escola privada tem nota 21% maior que negro da rede pública



Recorte inédito de dados de desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2010 nas capitais do País, além de confirmar a distância entre as notas médias dos estudantes de colégios particulares e os de escolas públicas, revela o abismo que separa estudantes brancos e negros das duas redes.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,aluno-branco-de-escola-privada-tem-nota-21-maior-que-negro-da-rede-publica-,915263,0.htm

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Trabalho apresentado no PSINEP 2010 
 
RELAÇÕES RACIAIS E SUBJETIVIDADES DE CRIANÇAS EM UMA ESCOLA PARTICULAR NA CIDADE DE SALVADOR

RESUMO:
A partir do referencial da teoria psicanalítica, aliado a procedimentos teórico-metodológicos das ciências sociais, a presente pesquisa tem por objetivo identificar o modo como as significações do racismo se inscrevem psiquicamente nas crianças e como tais significações produzem a dimensão simbólica do corpo negro e o ideal imaginário de brancura. Analiso os discursos das crianças e as ações desses atores no cotidiano escolar de uma instituição da rede particular de ensino da cidade de Salvador. A investigação teve o valor de levantar subsídios para as crescentes discussões acerca do racismo, reconhecendo as interações entre as estruturas sociais e as configurações que constituem o universo psíquico das crianças.

Palavras-chave: RACISMO; CRIANÇA; CORPO; PSICANÁLISE; ESCOLA.

domingo, 8 de julho de 2012

Especial Infância e Identidade - com participação de Marília Soares

Parte I
O Especial Infancia e Identidade produzido pela TV UFBA integrou a programação do Novembro Negro da TVE (2010). Aqui você confere um pouco das questões que fazem parte do universo infantil e muitas vezes têm um papel fundamental na educação das crianças.
A reportagem traz um recorte sobre a formação de identidade na infância e os elementos que fazem parte desse processo de amadurecimento. Também destaca a importância de reconhecer e afirmar traços da cultura africana. Esse é um programa para crianças e adultos. Confira!


Parte II

domingo, 8 de abril de 2012

E sobre o racismo, o que escutamos?


 Marília Carvalho Soares
Passei muito tempo tentando encontrar uma forma de dar início à minha fala aqui, hoje. Buscava a maneira adequada, palavras significativas, um convite que de fato incluísse todos vocês na caminhada que reconheço estar iniciando agora. Tentei delimitar um objetivo, identificando o que de mais expressivo gostaria de dizer nesta oportunidade. Por fim pareço ter encontrado uma maneira de juntos construirmos esse encontro. Peço que pensem ou anotem pelo menos três palavras que associam livremente, de acordo com as velhas recomendações de Freud, à palavra “negro”. O que vem? Pronto. Já podemos iniciar.

Reconheço a necessidade de escutarmos em primeira mão o nosso próprio racismo, acreditando que somente desta forma seremos capazes de escutar aqueles que nos chegam para falar sobre este assunto. Penso que estamos todos envolvidos nas sutis articulações que compõem este fenômeno, considerando, desse modo, que o racismo se configura como um sintoma social. Mas o que se presentifica entre tal sintoma social e o psiquismo de cada indivíduo negro? Considero que aí se articule uma dialética importante de ser estudada através da psicanálise.

Para Souza e Gallo (2002, p.39),

racismo é entendido como efeito de um processo que coloca em jogo tanto o temor subjetivo de se haver com o desejo do outro/estranho a mim mesmo como, também, uma fina rede de poderes articulados. O racismo advém de um extremo ódio e fascínio pela forma do gozo alheio, pelos modos como o outro quer/sabe ser feliz; formas de vidas outras que nos fazem ter a incômoda sensação de que talvez pudéssemos ser felizes de outros jeitos.

Segundo Fanon (2008, p.160-161), em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, “Quando a civilização européia entrou em contato com o mundo negro, (...) todo mundo concordou: esses pretos eram o princípio do mal. (...) negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais(...)”. O autor discorre sobre o medo do europeu frente ao africano. Esse medo estava certamente associado à sexualidade de um corpo negro, à sua natureza. Fomos tidos como primitivos e estigmatizados como tal. O biotipo do criminoso nato de Lambroso era o do negro, corpo que recebia rótulo de criminoso, preso e submetido à mensuração.

Atualizando tais formas de discriminação, ditados populares com representações negativas dos negros seguem sendo falados como práticas jocosas que aparecem mesmo quando a lei busca controlar. Trata-se de um racismo pautado em piadas, brincadeiras. Considerando que o inconsciente se manifesta através de sintomas, chistes, sonhos e atos falhos, esses são alguns dos momentos oportunos em que o preconceito, ganhando voz, grita o que em geral a consciência se esforça por reprimir. Este grito ecoa e produz ruídos. Enquanto não escutarmos, insistindo na crença de uma sociedade desracializada, de uma miscigenação democrática, os restos deste grito emudecido continuarão espalhados entre nós, enquanto sintoma social, e em cada indivíduo negro, como um incômodo muitas vezes desconhecido, sem nome, sem palavras...

Ainda hoje seguimos associando, com muita frequência, atributos biologizantes ao negro, como se estivéssemos, nós negros, mais próximos da natureza, afastados da cultura. Seríamos uma ameaça porque negros são, por exemplo, mais viris, mais emotivos, mais violentos... Tais estereótipos carregam o corpo negro de predicados negativos. Considerando que o racismo se pauta também na relação entre formas corporais e qualidades de ordem moral e intelectual, associadas a determinadas “aparências”, corpo, imagem, beleza são importantes significantes a serem incluídos nesta reflexão. Nesse sentido, cabe considerarmos o que Freud nos trouxe acerca do estranho, que para ele remete-nos ao estudo da estética2, incluindo como estranho aquilo que nos amedronta, tendo relação com a castração. Para Lacan (2005, p.51), o estranho “é aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi”, é a castração imaginária, porque não existe imagem da falta.

Buscando pensar o racismo à luz da Psicanálise, tentei inicialmente considerar as dimensões simbólicas do corpo negro e o ideal de brancura a que estes indivíduos se encontram submetidos. Assim, vi-me diante da tentativa de encontrar o nó, o ponto em que simbólico e imaginário se encontram, produzindo marcas psíquicas peculiares aos negros. Penso que a solução para esta questão seria reconhecer o racismo enquanto sintoma social, sintoma aí localizado entre o imaginário e o simbólico.

Em conversas iniciais sobre a questão racial com alguns psicanalistas, escutei repetidas vezes que este se trata de um tema da ordem do Imaginário. Parecia-me que, desta forma, pensar o racismo através da psicanálise seria necessariamente debruçar-me sobre um caminho no qual estaria dando voltas ali pela primeira alça do grafo do desejo, sem alcançar o pai, a Lei, a ordem do simbólico. Então eu pensava: qual é mesmo o engodo? O que engana? O significante engana! E é com ele que nos dispomos a trabalhar. Assim pude escutar com mais tranqüilidade as palavras coladas, aderidas ao corpo num primeiro momento de inserção neste mundo de letras ao qual pertencemos.

O Imaginário não seria menos importante, considerando que nos constituímos através destas primeiras investidas diante do espelho. Simbólico e Imaginário se encontram num mesmo sujeito e é através do significante que acessamos estas duas ordens. O sujeito, no estádio do espelho, se vê ao perceber a diferença e começa a pensar, refletir, acessando desse modo o simbólico.

O estádio do espelho é uma etapa fundamental no desenvolvimento do sujeito, durante a qual a criança faz a conquista da imagem do seu corpo próprio. O eu da criança humana, sobretudo em virtude da prematuração biológica, constitui-se a partir da imagem do seu semelhante. É no momento em que a criança percebe a existência de um outro, diferente dela, que se produz uma marca significante, fazendo emergir um sujeito. Trata-se de um sujeito que se vê e vê o outro através do espelho.

Fico pensando que tipo de imagem do próprio corpo o negro constrói. O que herdaríamos desse espelho? Muito comumente os negros rejeitam sua conformação física, buscando alcançar características que o aproximem “do branco”. Ainda bem cedo mães de crianças negras tentam modificar algumas marcas que correspondem a características próprias do negro. O sujeito aprisionado no Imaginário congela uma imagem.

Esse ideal de brancura parece nos perseguir... No mundo do trabalho é comum vivenciarmos a exigência de sermos os melhores, exemplares. Carregamos desejos de pais que projetaram em nós o sujeito que não puderam ser. A fim de diminuir as diferenças, negros se desdobram por alcançar um ideal de brancura. Buscamos articular um discurso homogêneo, como se todos pensassem igual, o que supostamente diminuiria a distância, aumentando a aceitação. Ser aceito seria mais importante do que ser si mesmo?! Que preço se paga? É impossível para o negro não se deparar com as ameaças que lhe chegam a todo momento. O racismo é uma expressão da violência. Como não se formula explicitamente, circula silencioso, velado...

Quais seriam então os efeitos desse discurso subliminar que faz operar o racismo? Que marcas ele deixa? A que tipo de sofrimento psíquico estamos submetidos?

Sendo psicóloga, psicanalista, educadora, e também em função da minha condição de negra, herdeira de um passado histórico que somente agora começa a ser contado nas escolas de forma mais responsável, após a implementação da lei 10.639/03, que colocou para as escolas a necessidade do ensino da História e da Cultura Afro-brasileira e Africana, tenho refletido acerca da dimensão psíquica do racismo, considerando o corpo negro como simbólico, o que corresponde a um caminho possível de ser trilhado através de diferentes saberes.

Referenciada nas minhas práticas profissionais em espaços de educação e clínica psicanalítica, realizei escutas de diferentes qualidades nesses contextos e foi a partir dessas experiências distintas que pude construir algumas observações que me servem de referência para abordar as subjetividades em processo. Processo, porque me refiro às relações presentes nos espaços considerados.

Nas escolas não é difícil observar, como em outros espaços de convívio, uma preocupação intensa com a aparência. A presença da violência física e verbal relacionadas a atributos do negro demonstra uma descontinuidade entre o que é vivido no cotidiano pelos educandos e educadores e o discurso assumido pelas escolas. A lei já citada tem obrigado as escolas a se colocarem diante dessa reflexão. Interessa saber a respeito do currículo oculto, o que fica por trás e permeia as relações, produzindo efeitos nas subjetividades construídas através das experiências cotidianas nas escolas.

Reconheço que a família e a escola têm importância fundamental nesse processo de construção de subjetividades. Para melhor compreender as sutilezas presentes nas relações raciais em nosso país, acredito ser necessário investigar como se constrói e se mantém a reprodução da discriminação a partir das relações vivenciadas nesses espaços. Escutar os discursos enunciados por pais, mães, irmãos, no contexto familiar, e aquilo que se diz nas escolas por colegas e educadores poderia elucidar algumas questões, traduzindo práticas de racismo através de vozes do cotidiano.

Criamos e recriamos todos os dias variados mecanismos de defesa para manter afastados da consciência conteúdos indesejáveis. Mas quanto menos simbolização, mais retorno do recalcado. O fracasso do recalque traz à tona o recalcado, o estranho ameaçador. Acredito que esse seja um caminho importante de ser mencionado, possibilitando-nos pensar sobre como tais fenômenos afetam o negro não apenas no plano sociológico, mas também no plano psíquico. Haveria aí uma dialética a ser considerada que envolve a experiência psíquica de cada sujeito e o fenômeno racista em sua totalidade.

De acordo com Pontalis (1991, p.39-40),

(...) o fenômeno racista só surge quando o "estrangeiro" está na cidade. (...) O racismo encontra suas fontes na oposição entre próprio e estrangeiro (...) mas para expulsar é preciso antes ter ingerido. Só se vomita o que se engoliu. Não há corpo estranho senão dentro do próprio corpo. (...) Depois, já não há no racista oscilação entre atração e medo, essa fascinação confusa pelo estranho e estrangeiro. (...) O racista separa, cliva, há nele um amor pelo seu ódio.





O estranho é efeito de um material que retorna, quando ele se mostra, assusta, espanta, trazendo à tona conteúdos pré-edípicos, nosso narcisismo primário. O que antes funcionava como um tipo de amor próprio ilimitado, necessário e estruturante, retorna como sintoma, apresentando-se sob a forma de um eu que não se distingue facilmente do mundo externo e das outras pessoas. Por isso se esforça por repelir, separar. Aí caberia a idéia primitiva e atual de superioridade das raças, como uma manifestação deste narcisismo primário.

O estranho jamais é assimilável. Quando o é, deixa, obviamente, de ser estranho (SOUZA e GALLO, 2002, p.57). Talvez por esse motivo eu tenha insistido na idéia de falarmos, escutarmos os discursos que reproduzem práticas racistas nos dias de hoje, porque penso que é através de experiências como esta que o estranho pode vir a tomar outras formas, ganhando palavras, permitindo que possamos reconhecer o estranho que somos nós para nós mesmos.

Daí a importância de darmos palavras ao incômodo presente nas relações de intolerância vivenciadas em nosso cotidiano. Freud escreveu sobre a intolerância mortífera do Estado Alemão e estava ali totalmente implicado. Assim pôde renovar a teoria, reinscrever traços, cortando letras. Diante do real da segregação, buscamos formas de sobrevivência, escutando sobre o que é ocupar este lugar estranho-familiar de excluído.

Não trago respostas, proponho questões. Isso nos parece familiar, não? Ou seria o estranho, aquilo que de tão próximo, parece-nos desconhecido. O estranho está no campo do ameaçador e parece funcionar assim a dinâmica do racismo. Para nós que vivemos em Salvador, cidade mais negra fora da África, o racismo é algo tão próximo, cotidiano e corriqueiro, mas reagimos muitas vezes como se fosse absurdo, uma aberração! Fanon nos disse: “Escuta, branco!”. Jurandir Freire Costa, por sua vez, parafraseando Fanon, disse: “Escuta, psicanalista!”. Para além do dito, nos interessa o dizer, a fala própria de cada um. E nós, psicanalistas, o que temos a dizer a respeito do racismo? Foi a este exercício que me dispus, buscando na Psicanálise referências que fundamentassem minhas reflexões, tentando construir cuidadosamente uma enunciação sobre este tema tão atual, discutido nos diversos espaços sociais. E por que não entre nós, psicanalistas?



BIBLIOGRAFIA

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREUD, S. “O estranho”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XVII. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.
-------------- “O Mal-Estar na Civilização”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 1996.

LACAN, J. (1959-1960). O Seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

NOGUEIRA, I. Significações do Corpo Negro. Tese de Doutorado. Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento. USP, 1998.

OLIVEIRA, L. Expressões de Vivência da Dimensão Racial de Pessoas Brancas: representações de branquitude entre indivíduos brancos. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em Psicologia. UFBA, 2007.

PONTALIS, J. Uma cara que não agrada. In: Pontalis, Jean-Baptiste, Perder de vista, Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

SOUZA, R. e GALLO, S. Por que matamos o barbeiro? Reflexões preliminares sobre a paradoxal exclusão do outro. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2002.

Disponível em: <www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10848.pdf> Acesso em: 10 ago. 2008

SOUZA, N. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, Rio de Janeiro: Editora Graal,1983.

VILHENA, J. Das cores e seus discursos: Sobre a violência do racismo, 2006.

Disponível em: <http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.4.3.3.htm> Acesso em: 28 abril. 2008.

1 Texto apresentado na Jornada da SEDE Psicanálise, 2008.

2“(...) por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir.” (FREUD, p.237, 2006).


MÃE PRETA - por Marília Soares



por Marília Soares


Uma mãe branca diz lembrar muito fortemente da sua sinhá Gregória. “Ela ajudou a minha mãe a me parir... Também a sinhá Rufina, sinhá Zefa, todas descendentes de escravos”. Ela ainda diz lembrar da negritude daquelas mulheres, do branco dos dentes e dos olhos delas. “Elas chamavam a gente de branca. A branca, o branco... Tinha o quê? Cinquenta anos que a escravidão havia sido abolida. Fico encabulada porque elas não falavam sobre a escravidão. Eu tinha vontade de saber o por quê.”

Assim inicio a minha fala hoje. O que falamos atualmente sobre a escravidão? Quais as marcas por ela deixadas? Silêncios vêm sendo rompidos e novas vozes ocupam espaços antes engendrados por barulhos ensurdecedores. A impossibilidade de filhos, netos e tantas gerações subsequentes falarem sobre as memórias relativas à escravidão, e também as contínuas práticas racistas que se reproduzem através do tempo, promoveram consequências em nossas relações sociais. Os barulhos aqui referidos apontam para as repetições que se atualizam diante da dificuldade de traduzir, nomear práticas racistas. Estes restos estão presentes nas famílias e, por este motivo, as tomamos como locus social fundamental, onde tais silêncios e barulhos podem ser lidos através dos discursos ali enunciados.

Mãe, mulher, filhos... Mães oferecem seu peito, seu leite, seu corpo e também suas palavras, carinhos, imagens... Mãe Stela, mãe Menininha... Ialorixás que ofereceram suas casas, acolhendo gente de diferentes origens em seus terreiros. No Candomblé, a mitologia dos orixás corresponde a narrativas presentes entre nós. São também mães: Iansã, mãe biológica e jurídica; Oxum, filha de Iemanjá, se mostra como uma mãe de criação; Iemanjá, por sua vez, mãe hierárquica, distante e indiferente. Ela ajudou Olodumaré a criar o mundo. Os pequenos ibejis, orixás protetores do cordão umbilical, nascem de Iansã e são criados por Oxum. Nanã foi uma grande justiceira, tendo fornecido a lama para a modelagem do homem. Euá, filha de Nanã, se transforma em nascente d'água para matar a sede dos seus dois filhos (PRANDI, 2001).

Dentre tantas narrativas, histórias e mitos, venho lhes falar mais especificamente acerca da mãe preta, por considerar que esta é uma personagem que representa uma marca em nossa cultura, permitindo reflexões pertinentes à psicanálise, na medida em que nos dispomos a diálogos ampliados. Para além dos sintomas individuais, abrimos espaços para pensar sobre sintomas sociais, como é o caso do racismo, mal estar que persiste em nossos dias.
Como sintomas individuais relacionados ao racismo, podemos considerar o que a psicanalista Neusa Souza (1983) nos trouxe em sua pesquisa com negros em ascensão social. Sua escuta permitiu identificar que aquelas pessoas viviam seus corpos como ferida narcísica. Insatisfeitos, diante de um supereu severo que aponta para um suposto ideal de brancura, expunham sentimentos de culpa, inferioridade, defesas fóbicas...

Os sintomas sociais em questão referem-se à imposição do embranquecimento, ao racismo enquanto sintomática compartilhada por todos nós. Mas como nada pode ser abolido sem que se mostre de alguma maneira, as consequências das vivências dos tempos de colônia são transmitidas através de processos psíquicos de uma geração para outra. O sintoma, como um traço, corresponde ao retorno do recalcado, que só depois pode ser simbolizado, traduzido.

Ao eleger a mãe preta como representante de um simbolismo fundamental à história do nosso povo, reconheço que ela esteve presente na estruturação de muitas famílias brasileiras desde os primeiros períodos da Colônia até a segunda metade do século XIX, quando passou a cumprir apenas a função de babá, as denominadas amas-secas.
Gilberto Freyre (2004), em sua sociologia por vezes romântica, apresenta-nos as ambiguidades das relações casa grande-senzala através destas mulheres.
Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar (…) Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. (...) Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de homem (FREYRE, 2004, p. 367).

O pai, naquele período, se mantinha distante dos seus filhos. Mais tarde, os rapazes vivenciavam uma atração pelas negras, que, segundo Freyre (2004), correspondia a uma marca registrada há mais tempo, nas suas infâncias. Este autor refere-se à importância psíquica do ato de mamar, relacionando tal fato à posterior predileção de homens brancos por mulheres negras. Diz o autor: “(...) homens brancos que só gozam com negra” (FREYRE, 2004, p. 368). Mas o que mais persistia desta vivência primordial?

Fotos deste período expõem imagens que podem ser interpretadas ao traduzirem a relação dessas mulheres com aqueles que maternavam. Vindas de fora, estranhas às famílias, elas partilhavam da intimidade, correspondendo mesmo ao estranho/familiar proposto por Freud (2006).

Deiab (2005) realiza uma interessante análise de pinturas que representavam os bebês carregados por suas mães pretas no final do século XIX. A autora demonstra o processo de invisibilização destas mulheres. A face da mãe preta, antes exposta em primeiro plano, tendo o bebê branco em seu colo, vai desaparecendo...

(…) as amas negras passam a existir nas fotografias como rastros: uma mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens (…) a princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do quadro nacional.

Oculta nestas fotografias, assim como nas histórias, nas nossas memórias, a mãe preta retorna, deixando rastros – uma mão, um punho – que nos permitem pensar sobre os traços, pegadas possíveis de serem trilhadas na direção do inconsciente.

O espetáculo apontado por Lacan (1998, p. 97) nos Escritos, quando se refere ao “bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum suporte humano ou artificial (...)”, me fez pensar nessa cena anteriormente descrita. Nos retratos dos filhos dos senhores, era a mãe preta esse suporte. Ela segurava, sustentava o bebê, inclusive por sua imaturidade neurológica, sustentação que nos remete à imagem especular que aponta para a matriz simbólica do eu. Durante os primeiros meses de vida, o bebê não é capaz de sustentar-se a si mesmo, ao seu corpo. É esse outro que lhe permite também uma sustentação subjetiva, para que um eu possa ir aos poucos se estruturando.

As palavras da mãe preta amolengavam o português, assim como fazia com a comida. Na linguagem das crianças, transformava o dói em dodói, traduzindo um mundo infantil que nos é bastante familiar: bumbum, dindinho, pipi, neném, papá... Das canções de ninar às histórias africanas, a mãe preta ia alimentando não somente o vocabulário, mas o jeito próprio de falarmos, sentirmos, relacionarmo-nos. As repercussões psíquicas sobre os adultos em relação a uma infância inundada por experiências tão próximas a estas mulheres é evidente e presente entre nós.

Em 1912, Augusto dos Anjos (1884-1914) apresentou-nos ao universo repleto de ambivalências, referindo-se à sua mãe preta:
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava
[...]
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!

Esta era a condição fundamental. Para ser mãe preta de filho branco, a escrava teria engravidado recentemente e seu filho natural era, necessariamente, preterido, quando não era vendido, afastado em definitivo de sua mãe.

Ao desempenhar a função materna, a mãe preta levava para a casa grande a sua história. Os espelhos estruturantes através dos quais os filhos brancos construíam suas próprias imagens estavam marcados pela maternagem vivenciada por meio daquelas mulheres.

Ao considerarmos que o que constitui o sujeito é justamente aquilo que o aliena, reconhecemos que a formação do eu passa pela imagem do Outro. O acesso da criança à sua imagem especular unificadora, totalizante, deve passar antes pelo desejo da mãe. Se pensarmos na mãe preta, que registros ficaram em nosso inconsciente? O corpo, pedaço de carne, frágil e necessitado de olhar, cuidados, vai sendo introduzido num mundo de linguagem, simbólico que precede à sua existência. Assim, as crianças vão sendo marcadas, e entre o assujeitamento e um sujeito incipiente, espelha uma imagem própria, quando dentro e fora parece não ter limites bem definidos.

Lacan (1986) nos fornece contribuições importantes às reflexões acerca da relação do sujeito à sua imagem, afirmando ser o estádio do espelho mais que uma etapa do desenvolvimento humano, constituindo-se enquanto base para a construção do eu, através de uma imagem primeva, um protótipo. Na relação entre simbólico, imaginário e real, o "jogo recíproco dos três grandes termos" se estabelece (LACAN, 1986, p. 89).

Ao considerarmos a importância dos objetos que internalizamos nos primórdios das nossas vidas, identificamos a mãe e, mais especificamente, o seio como o objeto primeiro. Ao eleger o significante mãe preta, pude reconhecer na relação desta personagem da nossa história com os filhos brancos dos senhores uma série de enodamentos relativos à sua função como ama de leite. Ao desempenhar a função materna, seu seio é tomado como objeto primário, e através deste contato, processos relativos à identificação narcísica são vivenciados, bem como a introjeção e projeção, movimentos sustentados por esta relação fundante.

Aí o amódio se apresenta na vinculação a esta a quem o bebê dirige seus impulsos agressivos e de afeição. Primeiro o ódio, depois o amor. Durante os primeiros meses de vida são frequentes as fantasias de conter o mamilo, devorar o seio... São troços, pedaços, cisões que apontam para a dinâmica de estruturação do eu. As pinturas de Bosch, como propõe Lacan, ao referir-se às imagens dos membros despedaçados e órgãos à mostra, expõem uma anatomia fantasística manifesta nos sintomas da psicose ou da histeria. Mas também o sadismo da nossa infância está inundado por tal despedaçamento. Uma forte carga agressiva está presente no período de amamentação. Diante da ausência do peito, o bebê chora. A mãe às vezes gratifica, mas também é preciso faltar e a sua ausência é experimentada pela criança como uma vivência negativa. A frustração oral dá lugar ao ódio, medo da lei que vem da mãe inicialmente. Como a criança dispõe de poucos meios de expressão, a agressividade dá voz ao apelo, que mais tarde se fará demanda de amor.

A formação do eu atravessa essa viagem pantanosa, luta pela busca de uma imagem de corpo próprio que vai sendo simbolizada aos poucos, à medida em que os investimentos libidinais permitem acessar o mundo externo, trazendo e expulsando de si seus objetos, construindo fronteiras não tão permanentes. As crianças reagem aos estímulos que vêm de fora, e a primeira “castração”, segundo Freud (2006, p. 76), se dá pela ausência do seio materno. A ausência da mãe faz marca, promovendo as primeiras separações dessa massa geral de sensações indissociadas pelo bebê. Sofrimento e desprazer que promovem a busca de domínio, a fim de trazer de volta para o eu o prazer, o objeto para sempre perdido.

A função fálica interdita a fusão originária entre a criança e aquela que cumpre a função materna. Sendo a função paterna responsável pela interdição, castração, ela representa proibição do incesto, o que possibilita conviver dentro de uma norma social. Interessa-nos saber como se estabeleceu a transição entre as primeiras referências transmitidas por aquela mãe preta e a separação, a inserção dessa função paterna, uma Lei do pai.

O que teria se passado com a gramática que herdamos das nossas mães pretas? A aparente ausência de inscrição desta maternagem traz-nos significativas indagações. A relação mãe/bebê está envolta por uma intensa carga de erotismo. Os bebês, filhos dos senhores, acessavam o corpo daquelas mulheres, sentiam prazer, recebiam proteção. Talvez aí repousem ou agitem-se as bases ambivalentes das relações raciais em nosso país. Estas crianças certamente internalizaram valores transmitidos por estas mães, que lhes ensinaram uma língua materna. Como tais contradições se articulam em nível inconsciente?

A sexualidade do negro era descrita como expansiva. Danças afrodisíacas, culto fálico, mulheres sedutoras... quando a sífilis se espalhou, as mães pretas foram responsabilizadas pela disseminação daquele mal. No final do século XIX, elas deixaram de ser amas de leite para então desempenhar a função de amas secas em decorrência das pressões higienistas da época. A ambiguidade incorporada por estas mulheres trazia consigo a ideia de boa mãe, por oferecer o leite. Nesse sentido, eram as mães pretas quase da família. Mas eram elas também estranhas, trazendo pra dentro a ameaça, o mal.

Alguns autores, como as sociólogas Marisa Corrêa (2007) e Rita Laura Segato (2006), referem-se ao desaparecimento da mãe preta da história atual, apontando para a invisibilização do trabalho realizado por estas mulheres. Elas se transformaram num objeto rejeitado, mas, certamente, incorporado em algum nível. Tal ambiguidade se mostra entre aquilo que tentamos excluir, expulsar e aquilo que se incorpora, bem ao modo como o racismo se configura. Foi desse modo que a mãe preta chegou a figurar uma personagem fundamental à manutenção da família. Mas ela não deixava de ser ali uma estranha...


BIBLIOGRAFIA

CORRÊA, Marisa. A Babá de Freud e Outras Babás, Cadernos Pagu, nº 29, Campinas: 2007;

DEIAB, R. Memória Afetiva da Escravidão, Revista de História da Biblioteca Nacional, outubro 2005.
Disponível em:
Acesso em: 12 de dez. de 2009;

FREUD, Sigmund. “O Mal-Estar na Civilização”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.

______, Sigmund. “O estranho”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XVII. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.  

FREIRE, Gilberto. Casa Grande-Senzala, São Paulo: Global, 2004;

KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963), Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991;

LACAN, Jacques. Os Escritos Técnicos de Freud, seminário 1, Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986;

_______, Jacques. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.


PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.

SEGATO, Rita Laura. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça, Brasília: 2006.

SOUZA, Neuza. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, Rio de Janeiro: Editora Graal,1983.