Psicanalista, psicóloga e Educadora. Formada em Psicologia Pela UFBA, mestre em Estudos Étnicos e Africanos da UFBA. Minha investigação, intitulada "RELAÇÕES RACIAIS NAS SUBJETIVIDADES DE CRIANÇAS EM UMA ESCOLA PARTICULAR NA CIDADE DE SALVADOR", teve a intenção de estabelecer conexões entre uma psicanálise e estudos étnicos e raciais, contemplando tambem referenciais teórico-metodológicos das Ciências Sociais.
segunda-feira, 13 de agosto de 2012
''I ENCONTRO DIÁLOGOS E II CURSO EM PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS'' 28\07\2012
Foto de Vinicius Melo.
Psic. Ma. Marília Soares, expondo sobre "Relações raciais e os impactos no processo de escolarização"
Psic. Ma. Marília Soares, expondo sobre "Relações raciais e os impactos no processo de escolarização"
"A ideia de escola como uma instituição branca sustenta-se através dos livros didáticos adotados, das práxis, dos posicionamentos dos educadores historicamente constituídos, sendo a ideologia da branquidade transmitida através de gerações. Trata-se do primeiro e importante cenário social em que são travadas as experiências conflitivas e tensas no que diz respeito às relações raciais".
Aluno branco de escola privada tem nota 21% maior que negro da rede pública
Recorte inédito de dados de desempenho no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2010 nas capitais do País, além de confirmar a distância entre as notas médias dos estudantes de colégios particulares e os de escolas públicas, revela o abismo que separa estudantes brancos e negros das duas redes.
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,aluno-branco-de-escola-privada-tem-nota-21-maior-que-negro-da-rede-publica-,915263,0.htm
segunda-feira, 9 de julho de 2012
Trabalho apresentado no PSINEP 2010
RELAÇÕES RACIAIS E SUBJETIVIDADES DE CRIANÇAS EM UMA ESCOLA PARTICULAR NA CIDADE DE SALVADOR
RESUMO:
A partir do referencial da teoria psicanalítica, aliado a procedimentos teórico-metodológicos das ciências sociais, a presente pesquisa tem por objetivo identificar o modo como as significações do racismo se inscrevem psiquicamente nas crianças e como tais significações produzem a dimensão simbólica do corpo negro e o ideal imaginário de brancura. Analiso os discursos das crianças e as ações desses atores no cotidiano escolar de uma instituição da rede particular de ensino da cidade de Salvador. A investigação teve o valor de levantar subsídios para as crescentes discussões acerca do racismo, reconhecendo as interações entre as estruturas sociais e as configurações que constituem o universo psíquico das crianças.
Palavras-chave: RACISMO; CRIANÇA; CORPO; PSICANÁLISE; ESCOLA.
Palavras-chave: RACISMO; CRIANÇA; CORPO; PSICANÁLISE; ESCOLA.
domingo, 8 de julho de 2012
Especial Infância e Identidade - com participação de Marília Soares
Parte I
O Especial Infancia e Identidade produzido pela TV UFBA integrou a
programação do Novembro Negro da TVE (2010). Aqui você confere um pouco das
questões que fazem parte do universo infantil e muitas vezes têm um
papel fundamental na educação das crianças.
A reportagem traz um recorte sobre a formação de identidade na infância e os elementos que fazem parte desse processo de amadurecimento. Também destaca a importância de reconhecer e afirmar traços da cultura africana. Esse é um programa para crianças e adultos. Confira!
A reportagem traz um recorte sobre a formação de identidade na infância e os elementos que fazem parte desse processo de amadurecimento. Também destaca a importância de reconhecer e afirmar traços da cultura africana. Esse é um programa para crianças e adultos. Confira!
Parte II
domingo, 8 de abril de 2012
E sobre o racismo, o que escutamos?
Marília Carvalho Soares
Passei muito tempo
tentando encontrar uma forma de dar início à minha fala aqui, hoje. Buscava a
maneira adequada, palavras significativas, um convite que de fato incluísse
todos vocês na caminhada que reconheço estar iniciando agora. Tentei delimitar
um objetivo, identificando o que de mais expressivo gostaria de dizer nesta
oportunidade. Por fim pareço ter encontrado uma maneira de juntos construirmos
esse encontro. Peço que pensem ou anotem pelo menos três palavras que associam
livremente, de acordo com as velhas recomendações de Freud, à palavra “negro”.
O que vem? Pronto. Já podemos iniciar.
Reconheço a
necessidade de escutarmos em primeira mão o nosso próprio racismo, acreditando
que somente desta forma seremos capazes de escutar aqueles que nos chegam para
falar sobre este assunto. Penso que estamos todos envolvidos nas sutis
articulações que compõem este fenômeno, considerando, desse modo, que o racismo
se configura como um sintoma social. Mas o que se presentifica entre tal
sintoma social e o psiquismo de cada indivíduo negro? Considero que aí se
articule uma dialética importante de ser estudada através da psicanálise.
Para Souza e Gallo
(2002, p.39),
racismo é entendido como efeito de um processo que coloca em jogo
tanto o temor subjetivo de se haver com o desejo do outro/estranho a mim mesmo
como, também, uma fina rede de poderes articulados. O racismo advém de um
extremo ódio e fascínio pela forma do gozo alheio, pelos modos como o outro
quer/sabe ser feliz; formas de vidas outras que nos fazem ter a incômoda
sensação de que talvez pudéssemos ser felizes de outros jeitos.
Segundo Fanon
(2008, p.160-161), em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas”, “Quando a
civilização européia entrou em contato com o mundo negro, (...) todo mundo
concordou: esses pretos eram o princípio do mal. (...) negro, o obscuro, a
sombra, as trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas
abissais(...)”. O autor discorre sobre o medo do europeu frente ao africano.
Esse medo estava certamente associado à sexualidade de um corpo negro, à sua
natureza. Fomos tidos como primitivos e estigmatizados como tal. O biotipo do
criminoso nato de Lambroso era o do negro, corpo que recebia rótulo de
criminoso, preso e submetido à mensuração.
Atualizando tais
formas de discriminação, ditados populares com representações negativas dos
negros seguem sendo falados como práticas jocosas que aparecem mesmo quando a
lei busca controlar. Trata-se de um racismo pautado em piadas, brincadeiras. Considerando
que o inconsciente se manifesta através de sintomas, chistes, sonhos e atos
falhos, esses são alguns dos momentos oportunos em que o preconceito, ganhando
voz, grita o que em geral a consciência se esforça por reprimir. Este grito
ecoa e produz ruídos. Enquanto não escutarmos, insistindo na crença de uma
sociedade desracializada, de uma miscigenação democrática, os restos deste
grito emudecido continuarão espalhados entre nós, enquanto sintoma social, e em
cada indivíduo negro, como um incômodo muitas vezes desconhecido, sem nome, sem
palavras...
Ainda hoje
seguimos associando, com muita frequência, atributos biologizantes ao negro,
como se estivéssemos, nós negros, mais próximos da natureza, afastados da
cultura. Seríamos uma ameaça porque negros são, por exemplo, mais viris, mais
emotivos, mais violentos... Tais estereótipos carregam o corpo negro de
predicados negativos. Considerando que o racismo se pauta também na relação
entre formas corporais e qualidades de ordem moral e intelectual, associadas a
determinadas “aparências”, corpo, imagem, beleza são importantes significantes
a serem incluídos nesta reflexão. Nesse sentido, cabe considerarmos o que Freud
nos trouxe acerca do estranho, que para ele remete-nos ao estudo da estética2,
incluindo como estranho aquilo que nos amedronta, tendo relação com a
castração. Para Lacan (2005, p.51), o estranho “é aquilo que aparece no lugar
em que deveria estar o menos-phi”, é a castração imaginária, porque não existe
imagem da falta.
Buscando pensar o
racismo à luz da Psicanálise, tentei inicialmente considerar as dimensões
simbólicas do corpo negro e o ideal de brancura a que estes indivíduos se
encontram submetidos. Assim, vi-me diante da tentativa de encontrar o nó, o
ponto em que simbólico e imaginário se encontram, produzindo marcas psíquicas
peculiares aos negros. Penso que a solução para esta questão seria reconhecer o
racismo enquanto sintoma social, sintoma aí localizado entre o imaginário e o
simbólico.
Em conversas
iniciais sobre a questão racial com alguns psicanalistas, escutei repetidas
vezes que este se trata de um tema da ordem do Imaginário. Parecia-me que,
desta forma, pensar o racismo através da psicanálise seria necessariamente
debruçar-me sobre um caminho no qual estaria dando voltas ali pela primeira
alça do grafo do desejo, sem alcançar o pai, a Lei, a ordem do simbólico. Então
eu pensava: qual é mesmo o engodo? O que engana? O significante engana! E é com
ele que nos dispomos a trabalhar. Assim pude escutar com mais tranqüilidade as
palavras coladas, aderidas ao corpo num primeiro momento de inserção neste
mundo de letras ao qual pertencemos.
O Imaginário não
seria menos importante, considerando que nos constituímos através destas
primeiras investidas diante do espelho. Simbólico e Imaginário se encontram num
mesmo sujeito e é através do significante que acessamos estas duas ordens. O
sujeito, no estádio do espelho, se vê ao perceber a diferença e começa a
pensar, refletir, acessando desse modo o simbólico.
O estádio do
espelho é uma etapa fundamental no desenvolvimento do sujeito, durante a qual a
criança faz a conquista da imagem do seu corpo próprio. O eu da criança humana,
sobretudo em virtude da prematuração biológica, constitui-se a partir da imagem
do seu semelhante. É no momento em que a criança percebe a existência de um
outro, diferente dela, que se produz uma marca significante, fazendo emergir um
sujeito. Trata-se de um sujeito que se vê e vê o outro através do espelho.
Fico pensando que
tipo de imagem do próprio corpo o negro constrói. O que herdaríamos desse
espelho? Muito comumente os negros rejeitam sua conformação física, buscando
alcançar características que o aproximem “do branco”. Ainda bem cedo mães de
crianças negras tentam modificar algumas marcas que correspondem a
características próprias do negro. O sujeito aprisionado no Imaginário congela
uma imagem.
Esse ideal de
brancura parece nos perseguir... No mundo do trabalho é comum vivenciarmos a
exigência de sermos os melhores, exemplares. Carregamos desejos de pais que
projetaram em nós o sujeito que não puderam ser. A fim de diminuir as
diferenças, negros se desdobram por alcançar um ideal de brancura. Buscamos
articular um discurso homogêneo, como se todos pensassem igual, o que
supostamente diminuiria a distância, aumentando a aceitação. Ser aceito seria
mais importante do que ser si mesmo?! Que preço se paga? É impossível para o
negro não se deparar com as ameaças que lhe chegam a todo momento. O racismo é
uma expressão da violência. Como não se formula explicitamente, circula
silencioso, velado...
Quais seriam então
os efeitos desse discurso subliminar que faz operar o racismo? Que marcas ele
deixa? A que tipo de sofrimento psíquico estamos submetidos?
Sendo psicóloga,
psicanalista, educadora, e também em função da minha condição de negra,
herdeira de um passado histórico que somente agora começa a ser contado nas
escolas de forma mais responsável, após a implementação da lei 10.639/03, que
colocou para as escolas a necessidade do ensino da História e da Cultura
Afro-brasileira e Africana, tenho refletido acerca da dimensão psíquica do
racismo, considerando o corpo negro como simbólico, o que corresponde a um
caminho possível de ser trilhado através de diferentes saberes.
Referenciada nas
minhas práticas profissionais em espaços de educação e clínica psicanalítica,
realizei escutas de diferentes qualidades nesses contextos e foi a partir
dessas experiências distintas que pude construir algumas observações que me
servem de referência para abordar as subjetividades em processo. Processo,
porque me refiro às relações presentes nos espaços considerados.
Nas escolas não é
difícil observar, como em outros espaços de convívio, uma preocupação intensa
com a aparência. A presença da violência física e verbal relacionadas a
atributos do negro demonstra uma descontinuidade entre o que é vivido no
cotidiano pelos educandos e educadores e o discurso assumido pelas escolas. A
lei já citada tem obrigado as escolas a se colocarem diante dessa reflexão.
Interessa saber a respeito do currículo oculto, o que fica por trás e permeia
as relações, produzindo efeitos nas subjetividades construídas através das
experiências cotidianas nas escolas.
Reconheço que a
família e a escola têm importância fundamental nesse processo de construção de
subjetividades. Para melhor compreender as sutilezas presentes nas relações
raciais em nosso país, acredito ser necessário investigar como se constrói e se
mantém a reprodução da discriminação a partir das relações vivenciadas nesses
espaços. Escutar os discursos enunciados por pais, mães, irmãos, no contexto
familiar, e aquilo que se diz nas escolas por colegas e educadores poderia
elucidar algumas questões, traduzindo práticas de racismo através de vozes do
cotidiano.
Criamos e
recriamos todos os dias variados mecanismos de defesa para manter afastados da
consciência conteúdos indesejáveis. Mas quanto menos simbolização, mais retorno
do recalcado. O fracasso do recalque traz à tona o recalcado, o estranho
ameaçador. Acredito que esse seja um caminho importante de ser mencionado,
possibilitando-nos pensar sobre como tais fenômenos afetam o negro não apenas
no plano sociológico, mas também no plano psíquico. Haveria aí uma dialética a
ser considerada que envolve a experiência psíquica de cada sujeito e o fenômeno
racista em sua totalidade.
De acordo com
Pontalis (1991, p.39-40),
(...) o fenômeno racista só surge quando o "estrangeiro"
está na cidade. (...) O racismo encontra suas fontes na oposição entre próprio
e estrangeiro (...) mas para expulsar é preciso antes ter ingerido. Só se
vomita o que se engoliu. Não há corpo estranho senão dentro do próprio corpo.
(...) Depois, já não há no racista oscilação entre atração e medo, essa
fascinação confusa pelo estranho e estrangeiro. (...) O racista separa, cliva,
há nele um amor pelo seu ódio.
O estranho é efeito
de um material que retorna, quando ele se mostra, assusta, espanta, trazendo à
tona conteúdos pré-edípicos, nosso narcisismo primário. O que antes funcionava
como um tipo de amor próprio ilimitado, necessário e estruturante, retorna como
sintoma, apresentando-se sob a forma de um eu que não se distingue facilmente
do mundo externo e das outras pessoas. Por isso se esforça por repelir,
separar. Aí caberia a idéia primitiva e atual de superioridade das raças, como
uma manifestação deste narcisismo primário.
O estranho jamais
é assimilável. Quando o é, deixa, obviamente, de ser estranho (SOUZA e GALLO,
2002, p.57). Talvez por esse motivo eu tenha insistido na idéia de falarmos,
escutarmos os discursos que reproduzem práticas racistas nos dias de hoje,
porque penso que é através de experiências como esta que o estranho pode vir a
tomar outras formas, ganhando palavras, permitindo que possamos reconhecer o
estranho que somos nós para nós mesmos.
Daí a importância de darmos palavras ao
incômodo presente nas relações de intolerância vivenciadas em nosso cotidiano.
Freud escreveu sobre a intolerância mortífera do Estado Alemão e estava ali
totalmente implicado. Assim pôde renovar a teoria, reinscrever traços, cortando
letras. Diante do real da segregação, buscamos formas de sobrevivência,
escutando sobre o que é ocupar este lugar estranho-familiar de excluído.
Não trago
respostas, proponho questões. Isso nos parece familiar, não? Ou seria o
estranho, aquilo que de tão próximo, parece-nos desconhecido. O estranho está
no campo do ameaçador e parece funcionar assim a dinâmica do racismo. Para nós
que vivemos em Salvador, cidade mais negra fora da África, o racismo é algo tão
próximo, cotidiano e corriqueiro, mas reagimos muitas vezes como se fosse absurdo,
uma aberração! Fanon nos disse: “Escuta, branco!”. Jurandir Freire Costa, por
sua vez, parafraseando Fanon, disse: “Escuta, psicanalista!”. Para além do
dito, nos interessa o dizer, a fala própria de cada um. E nós, psicanalistas, o
que temos a dizer a respeito do racismo? Foi a este exercício que me dispus,
buscando na Psicanálise referências que fundamentassem minhas reflexões,
tentando construir cuidadosamente uma enunciação sobre este tema tão atual,
discutido nos diversos espaços sociais. E por que não entre nós, psicanalistas?
BIBLIOGRAFIA
FANON, F. Pele
negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
FREUD, S. “O
estranho”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XVII. Rio de
Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.
-------------- “O
Mal-Estar na Civilização”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume
XXI. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 1996.
LACAN, J.
(1959-1960). O Seminário, livro 10, A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
NOGUEIRA, I.
Significações do Corpo Negro. Tese de Doutorado. Pós-Graduação em Psicologia
Escolar e do Desenvolvimento. USP, 1998.
OLIVEIRA, L.
Expressões de Vivência da Dimensão Racial de Pessoas Brancas: representações de
branquitude entre indivíduos brancos. Dissertação de Mestrado. Pós-Graduação em
Psicologia. UFBA, 2007.
PONTALIS, J. Uma
cara que não agrada. In: Pontalis, Jean-Baptiste, Perder de vista, Rio de
Janeiro: Zahar, 1991.
SOUZA, R. e GALLO,
S. Por que matamos o barbeiro? Reflexões preliminares sobre a paradoxal
exclusão do outro. Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), 2002.
Disponível em:
<www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10848.pdf>
Acesso em: 10 ago. 2008
SOUZA, N.
Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão
social, Rio de Janeiro: Editora Graal,1983.
VILHENA, J. Das
cores e seus discursos: Sobre a violência do racismo, 2006.
Disponível em:
<http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.4.3.3.htm>
Acesso em: 28 abril. 2008.
1 Texto apresentado na Jornada da SEDE
Psicanálise, 2008.
2“(...)
por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das
qualidades do sentir.” (FREUD, p.237, 2006).
MÃE PRETA - por Marília Soares
por Marília Soares
Uma mãe branca diz lembrar muito fortemente da sua sinhá Gregória. “Ela
ajudou a minha mãe a me parir... Também a sinhá Rufina, sinhá Zefa,
todas descendentes de escravos”. Ela ainda diz lembrar da negritude
daquelas mulheres, do branco dos dentes e dos olhos delas. “Elas
chamavam a gente de branca. A branca, o branco... Tinha o quê? Cinquenta
anos que a escravidão havia sido abolida. Fico encabulada porque elas
não falavam sobre a escravidão. Eu tinha vontade de saber o por quê.”
Assim inicio a minha fala hoje. O que falamos atualmente sobre a
escravidão? Quais as marcas por ela deixadas? Silêncios vêm sendo
rompidos e novas vozes ocupam espaços antes engendrados por barulhos
ensurdecedores. A impossibilidade de filhos, netos e tantas gerações
subsequentes falarem sobre as memórias relativas à escravidão, e também
as contínuas práticas racistas que se reproduzem através do tempo,
promoveram consequências em nossas relações sociais. Os barulhos aqui
referidos apontam para as repetições que se atualizam diante da
dificuldade de traduzir, nomear práticas racistas. Estes restos estão
presentes nas famílias e, por este motivo, as tomamos como locus social
fundamental, onde tais silêncios e barulhos podem ser lidos através dos
discursos ali enunciados.
Mãe, mulher, filhos... Mães oferecem seu peito, seu leite, seu corpo e
também suas palavras, carinhos, imagens... Mãe Stela, mãe Menininha...
Ialorixás que ofereceram suas casas, acolhendo gente de diferentes
origens em seus terreiros. No Candomblé, a mitologia dos orixás
corresponde a narrativas presentes entre nós. São também mães: Iansã,
mãe biológica e jurídica; Oxum, filha de Iemanjá, se mostra como uma mãe
de criação; Iemanjá, por sua vez, mãe hierárquica, distante e
indiferente. Ela ajudou Olodumaré a criar o mundo. Os pequenos ibejis,
orixás protetores do cordão umbilical, nascem de Iansã e são criados por
Oxum. Nanã foi uma grande justiceira, tendo fornecido a lama para a
modelagem do homem. Euá, filha de Nanã, se transforma em nascente d'água
para matar a sede dos seus dois filhos (PRANDI, 2001).
Dentre tantas narrativas, histórias e mitos, venho lhes falar mais
especificamente acerca da mãe preta, por considerar que esta é uma
personagem que representa uma marca em nossa cultura, permitindo
reflexões pertinentes à psicanálise, na medida em que nos dispomos a
diálogos ampliados. Para além dos sintomas individuais, abrimos espaços
para pensar sobre sintomas sociais, como é o caso do racismo, mal estar
que persiste em nossos dias.
Como sintomas individuais relacionados ao racismo, podemos considerar o
que a psicanalista Neusa Souza (1983) nos trouxe em sua pesquisa com
negros em ascensão social. Sua escuta permitiu identificar que aquelas
pessoas viviam seus corpos como ferida narcísica. Insatisfeitos, diante
de um supereu severo que aponta para um suposto ideal de brancura,
expunham sentimentos de culpa, inferioridade, defesas fóbicas...
Os sintomas sociais em questão referem-se à imposição do
embranquecimento, ao racismo enquanto sintomática compartilhada por
todos nós. Mas como nada pode ser abolido sem que se mostre de alguma
maneira, as consequências das vivências dos tempos de colônia são
transmitidas através de processos psíquicos de uma geração para outra. O
sintoma, como um traço, corresponde ao retorno do recalcado, que só
depois pode ser simbolizado, traduzido.
Ao eleger a mãe preta como representante de um simbolismo fundamental à
história do nosso povo, reconheço que ela esteve presente na
estruturação de muitas famílias brasileiras desde os primeiros períodos
da Colônia até a segunda metade do século XIX, quando passou a cumprir
apenas a função de babá, as denominadas amas-secas.
Gilberto Freyre (2004), em sua sociologia por vezes romântica,
apresenta-nos as ambiguidades das relações casa grande-senzala através
destas mulheres.
Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar (…) Da negra
velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de
mal-assombrado. (...) Da que nos iniciou no amor físico e nos
transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação completa de
homem (FREYRE, 2004, p. 367).
O pai, naquele período, se mantinha distante dos seus filhos. Mais
tarde, os rapazes vivenciavam uma atração pelas negras, que, segundo
Freyre (2004), correspondia a uma marca registrada há mais tempo, nas
suas infâncias. Este autor refere-se à importância psíquica do ato de
mamar, relacionando tal fato à posterior predileção de homens brancos
por mulheres negras. Diz o autor: “(...) homens brancos que só gozam com
negra” (FREYRE, 2004, p. 368). Mas o que mais persistia desta vivência
primordial?
Fotos deste período expõem imagens que podem ser interpretadas ao
traduzirem a relação dessas mulheres com aqueles que maternavam. Vindas
de fora, estranhas às famílias, elas partilhavam da intimidade,
correspondendo mesmo ao estranho/familiar proposto por Freud (2006).
Deiab (2005) realiza uma interessante análise de pinturas que
representavam os bebês carregados por suas mães pretas no final do
século XIX. A autora demonstra o processo de invisibilização destas
mulheres. A face da mãe preta, antes exposta em primeiro plano, tendo o
bebê branco em seu colo, vai desaparecendo...
(…) as amas negras passam a existir nas fotografias como rastros: uma
mão, um punho, até serem completamente banidas das imagens (…) a
princípio mostrada com orgulho, de rosto inteiro, depois escondida, em
segundo plano, desfocada e retocada, até ser completamente retirada do
quadro nacional.
Oculta nestas fotografias, assim como nas histórias, nas nossas
memórias, a mãe preta retorna, deixando rastros – uma mão, um punho –
que nos permitem pensar sobre os traços, pegadas possíveis de serem
trilhadas na direção do inconsciente.
O espetáculo apontado por Lacan (1998, p. 97) nos Escritos, quando se
refere ao “bebê que, diante do espelho, ainda sem ter o controle da
marcha ou sequer da postura ereta, mas totalmente estreitado por algum
suporte humano ou artificial (...)”, me fez pensar nessa cena
anteriormente descrita. Nos retratos dos filhos dos senhores, era a mãe
preta esse suporte. Ela segurava, sustentava o bebê, inclusive por sua
imaturidade neurológica, sustentação que nos remete à imagem especular
que aponta para a matriz simbólica do eu. Durante os primeiros meses de
vida, o bebê não é capaz de sustentar-se a si mesmo, ao seu corpo. É
esse outro que lhe permite também uma sustentação subjetiva, para que um
eu possa ir aos poucos se estruturando.
As palavras da mãe preta amolengavam o português, assim como fazia com a
comida. Na linguagem das crianças, transformava o dói em dodói,
traduzindo um mundo infantil que nos é bastante familiar: bumbum,
dindinho, pipi, neném, papá... Das canções de ninar às histórias
africanas, a mãe preta ia alimentando não somente o vocabulário, mas o
jeito próprio de falarmos, sentirmos, relacionarmo-nos. As repercussões
psíquicas sobre os adultos em relação a uma infância inundada por
experiências tão próximas a estas mulheres é evidente e presente entre
nós.
Em 1912, Augusto dos Anjos (1884-1914) apresentou-nos ao universo repleto de ambivalências, referindo-se à sua mãe preta:
A minha ama de leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava
[...]
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Esta era a condição fundamental. Para ser mãe preta de filho branco, a
escrava teria engravidado recentemente e seu filho natural era,
necessariamente, preterido, quando não era vendido, afastado em
definitivo de sua mãe.
Ao desempenhar a função materna, a mãe preta levava para a casa grande a
sua história. Os espelhos estruturantes através dos quais os filhos
brancos construíam suas próprias imagens estavam marcados pela
maternagem vivenciada por meio daquelas mulheres.
Ao considerarmos que o que constitui o sujeito é justamente aquilo que o
aliena, reconhecemos que a formação do eu passa pela imagem do Outro. O
acesso da criança à sua imagem especular unificadora, totalizante, deve
passar antes pelo desejo da mãe. Se pensarmos na mãe preta, que
registros ficaram em nosso inconsciente? O corpo, pedaço de carne,
frágil e necessitado de olhar, cuidados, vai sendo introduzido num mundo
de linguagem, simbólico que precede à sua existência. Assim, as
crianças vão sendo marcadas, e entre o assujeitamento e um sujeito
incipiente, espelha uma imagem própria, quando dentro e fora parece não
ter limites bem definidos.
Lacan (1986) nos fornece contribuições importantes às reflexões acerca
da relação do sujeito à sua imagem, afirmando ser o estádio do espelho
mais que uma etapa do desenvolvimento humano, constituindo-se enquanto
base para a construção do eu, através de uma imagem primeva, um
protótipo. Na relação entre simbólico, imaginário e real, o "jogo
recíproco dos três grandes termos" se estabelece (LACAN, 1986, p. 89).
Ao considerarmos a importância dos objetos que internalizamos nos
primórdios das nossas vidas, identificamos a mãe e, mais
especificamente, o seio como o objeto primeiro. Ao eleger o significante
mãe preta, pude reconhecer na relação desta personagem da nossa
história com os filhos brancos dos senhores uma série de enodamentos
relativos à sua função como ama de leite. Ao desempenhar a função
materna, seu seio é tomado como objeto primário, e através deste
contato, processos relativos à identificação narcísica são vivenciados,
bem como a introjeção e projeção, movimentos sustentados por esta
relação fundante.
Aí o amódio se apresenta na vinculação a esta a quem o bebê dirige seus
impulsos agressivos e de afeição. Primeiro o ódio, depois o amor.
Durante os primeiros meses de vida são frequentes as fantasias de conter
o mamilo, devorar o seio... São troços, pedaços, cisões que apontam
para a dinâmica de estruturação do eu. As pinturas de Bosch, como propõe
Lacan, ao referir-se às imagens dos membros despedaçados e órgãos à
mostra, expõem uma anatomia fantasística manifesta nos sintomas da
psicose ou da histeria. Mas também o sadismo da nossa infância está
inundado por tal despedaçamento. Uma forte carga agressiva está presente
no período de amamentação. Diante da ausência do peito, o bebê chora. A
mãe às vezes gratifica, mas também é preciso faltar e a sua ausência é
experimentada pela criança como uma vivência negativa. A frustração oral
dá lugar ao ódio, medo da lei que vem da mãe inicialmente. Como a
criança dispõe de poucos meios de expressão, a agressividade dá voz ao
apelo, que mais tarde se fará demanda de amor.
A formação do eu atravessa essa viagem pantanosa, luta pela busca de
uma imagem de corpo próprio que vai sendo simbolizada aos poucos, à
medida em que os investimentos libidinais permitem acessar o mundo
externo, trazendo e expulsando de si seus objetos, construindo
fronteiras não tão permanentes. As crianças reagem aos estímulos que vêm
de fora, e a primeira “castração”, segundo Freud (2006, p. 76), se dá
pela ausência do seio materno. A ausência da mãe faz marca, promovendo
as primeiras separações dessa massa geral de sensações indissociadas
pelo bebê. Sofrimento e desprazer que promovem a busca de domínio, a fim
de trazer de volta para o eu o prazer, o objeto para sempre perdido.
A função fálica interdita a fusão originária entre a criança e aquela
que cumpre a função materna. Sendo a função paterna responsável pela
interdição, castração, ela representa proibição do incesto, o que
possibilita conviver dentro de uma norma social. Interessa-nos saber
como se estabeleceu a transição entre as primeiras referências
transmitidas por aquela mãe preta e a separação, a inserção dessa função
paterna, uma Lei do pai.
O que teria se passado com a gramática que herdamos das nossas mães
pretas? A aparente ausência de inscrição desta maternagem traz-nos
significativas indagações. A relação mãe/bebê está envolta por uma
intensa carga de erotismo. Os bebês, filhos dos senhores, acessavam o
corpo daquelas mulheres, sentiam prazer, recebiam proteção. Talvez aí
repousem ou agitem-se as bases ambivalentes das relações raciais em
nosso país. Estas crianças certamente internalizaram valores
transmitidos por estas mães, que lhes ensinaram uma língua materna. Como
tais contradições se articulam em nível inconsciente?
A sexualidade do negro era descrita como expansiva. Danças
afrodisíacas, culto fálico, mulheres sedutoras... quando a sífilis se
espalhou, as mães pretas foram responsabilizadas pela disseminação
daquele mal. No final do século XIX, elas deixaram de ser amas de leite
para então desempenhar a função de amas secas em decorrência das
pressões higienistas da época. A ambiguidade incorporada por estas
mulheres trazia consigo a ideia de boa mãe, por oferecer o leite. Nesse
sentido, eram as mães pretas quase da família. Mas eram elas também
estranhas, trazendo pra dentro a ameaça, o mal.
Alguns autores, como as sociólogas Marisa Corrêa (2007) e Rita Laura
Segato (2006), referem-se ao desaparecimento da mãe preta da história
atual, apontando para a invisibilização do trabalho realizado por estas
mulheres. Elas se transformaram num objeto rejeitado, mas, certamente,
incorporado em algum nível. Tal ambiguidade se mostra entre aquilo que
tentamos excluir, expulsar e aquilo que se incorpora, bem ao modo como o
racismo se configura. Foi desse modo que a mãe preta chegou a figurar
uma personagem fundamental à manutenção da família. Mas ela não deixava
de ser ali uma estranha...
BIBLIOGRAFIA
CORRÊA, Marisa. A Babá de Freud e Outras Babás, Cadernos Pagu, nº 29, Campinas: 2007;
DEIAB, R. Memória Afetiva da Escravidão, Revista de História da Biblioteca Nacional, outubro 2005.
Disponível em:
Acesso em: 12 de dez. de 2009;
FREUD, Sigmund. “O Mal-Estar na Civilização”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.
______, Sigmund. “O estranho”. In FREUD, S. Obras Psicológicas Completas, volume XVII. Rio de Janeiro: Imago, Edição Standard Brasileira, 2006.
FREIRE, Gilberto. Casa Grande-Senzala, São Paulo: Global, 2004;
KLEIN, Melanie. Inveja e Gratidão e outros trabalhos (1946-1963), Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991;
LACAN, Jacques. Os Escritos Técnicos de Freud, seminário 1, Riode Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986;
_______, Jacques. Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás, São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
SEGATO, Rita Laura. O Édipo Brasileiro: a dupla negação de gênero e raça, Brasília: 2006.
SOUZA, Neuza. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, Rio de Janeiro: Editora Graal,1983.
QUEM SOU EU
Sou
Marília Carvalho Soares, psicanalista, psicóloga e educadora. Formada
em Psicologia pela UFBA, mestre em Estudos Étnicos e Africanos UFBA. Minha
investigação, intitulada “Relações Raciais nas
Subjetividades de Crianças em uma Escola Particular na Cidade de
Salvador”, teve a intenção de estabelecer conexões entre a psicanálise e
os estudos étnicos e raciais, contemplando também referenciais
teórico-metodológicos das ciências sociais. Os trabalhos aqui apresentados seguem esta premissa, correspondendo ao exercício reflexivo
ao qual tenho me dedicado especialmente nos últimos anos.
Nosso
trabalho com a psicanálise aponta para a escuta das palavras, dos
silêncios. Como nos diz o poeta Manoel de Barros, trata-se de “Repetir,
repetir, até ficar diferente (...)”. E desse modo tenho escutado as
crianças, ou mesmo a criança no adulto. É o que tem me motivado nesse
percurso.
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